História e memória
Compreendendo o Passado e as Disputas pelo Controle da Narrativa
Olá pessoas!
Hoje vamos falar sobre a importância da memória e da interpretação das fontes na hora de construirmos uma narrativa histórica.
Então recapitulando, a história é a ciência que estuda os eventos do passado e procura compreender os processos que moldaram as sociedades e culturas atuais e não podemos esquecer que seu principal objeto de estudo não são os dinossauros, mas sim os seres humanos.
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História e mentalidade
Sendo assim, para compreendermos as sociedades e culturas do passado, o historiador precisa ir além dos fatos e datas e investigar o que homens e mulheres pensaram e sentiram em suas épocas e em seu ambiente social.
Nesse sentido, é fundamental considerar a cultura, a economia, a política e até mesmo as mentalidades de uma época.
Mas o que são as mentalidades? Para responder a esta pergunta temos que recorrer a escola dos Annales, bora lá?
A escola dos Annales é uma corrente historiográfica que surgiu na França no começo do século XX, propondo um novo olhar sobre a história, ressaltando a importância das mentalidades para uma melhor compreensão sobre as sociedades do passado.
De acordo com essa escola, as mentalidades são as formas de pensar, sentir e agir de uma sociedade em determinado momento histórico. São as crenças, os valores, os hábitos, os costumes e as emoções que permeiam a vida das pessoas e que são compartilhados por uma comunidade.
Para os Annales, a história das mentalidades é importante porque permite entender como as pessoas enxergavam o mundo ao seu redor e como elas se relacionavam com ele.
Essa perspectiva da história valoriza as experiências cotidianas e as subjetividades dos indivíduos, buscando compreender a vida social em sua complexidade. É uma história que não se limita aos grandes acontecimentos e personagens históricos, mas que se preocupa em compreender as estruturas e as relações sociais que moldam as sociedades ao longo do tempo.
Então você pode se perguntar. Será que as pessoas pensam diferente dependendo da época em que elas nasceram? E essa é uma questão importante a ser levantada, já que a mentalidade das pessoas é influenciada por diversos fatores, como a religião, a ciência, as tradições culturais e os valores sociais, podemos acrescentar que também são influenciadas pela sua época e localização geográfica onde está localizada. Por exemplo uma criança que viveu durante a revolução industrial inglesa no séc XVIII não é igual a uma criança que viveu a pandemia de Covid-19 no século XXI
História e memória
Outro aspecto crucial da história é a relação entre história e memória. A memória é um campo de disputa histórico, marcado pelos interesses sociais de uma época. Assim, é comum que haja batalhas pela memória, com os diferentes grupos sociais disputando o controle da narrativa sobre o passado.
Marcos históricos, por exemplo, é comum que esses marcos sejam escolhidos pelas classes sociais dominantes, com uma tendência de esquecer ou minimizar a contribuição de grupos não dominantes. Por outro lado, há uma constante luta pela ampliação da memória social, a fim de incluir as vozes silenciadas da história.
Um bom exemplo da classe social dominante escolhendo seus marcos históricos e os heróis de todo um povo é a Estátua de Borba Gato, ela é interessante para ilustrar essa disputa pela memória.
Afinal Borba Gato é Representante da memória das classes bandeirantes paulistas, a estátua tem sido alvo de críticas por parte de grupos que a consideram um símbolo da opressão e violência contra as populações indígenas e escravizadas. Entretanto até mesmo a sede do governo paulista ainda hoje é chamada de palácio dos bandeirantes. Esse é um excelente exemplo de como a disputa pelo controle da memória pode gerar conflitos e tensões na sociedade.
Diz aí nos comentários o que você acha sobre esses ditos Heróis brasileiros. No futuro teremos um artigo só pra falar dos Bandeirantes considerados pelos paulistas como “uma raça de gigantes”.
História e interpretação.
A interpretação é um elemento-chave da história, uma vez que a história não renasce magicamente das fontes, ela precisa ser interpretada. Os documentos podem até ser considerados como ecos do passado, mas não são vozes que dizem toda a verdade sobre os fatos. Isso significa que o historiador precisa saber fazer perguntas para compreender os sentidos e significados dos acontecimentos históricos. Nesse ponto fazer as perguntas certas pode ser fundamental, para a sobrevivência de toda a memória de um povo.
Vou te propor um desafio para saber se você sabe fazer a pergunta certa, preparado? Bom como diz minha filha ao brincar de esconde esconde, preparados ou não aí vou eu:
Imagine que você foi capturado pelo Jig Saw de Jogos Mortais. Você está sozinho(a) preso em uma sala que tem duas portas e dois computadores e nada além disso. No chão existe um bilhete com os seguintes dizeres:
“ Esta sala possui duas portas, uma te leva para a saída e a outra te leva para a morte. A sala possui também dois computadores, um deles diz somente a verdade, o outro diz somente a mentira. Você tem o direito de fazer uma única pergunta, para apenas um dos computadores. Existe uma pergunta que te dá 100% de chance de sair vivo.”
E aí você sabe qual é essa pergunta?
A pergunta certa é: Qual porta o outro computador me indicaria se eu pedisse que me indicasse a porta que me deixa livre?
E aí acertou? não acredita? eu explico
Se fosse o computador que diz a verdade ele diria que o mentiroso indicaria a porta errada.
Se fosse o mentiroso ele diria que o que fala a verdade indicaria a porta errada.
Sabendo disso basta sair pela porta contrária.
Tá certo achou esse exemplo estapafúrdio e que investigar um documento histórico não deve ser tão difícil assim? E que o trabalho dos historiadores é muito mais fácil, afinal não somos capturados pelo Jig Saw o tempo todo não é?
Então se liga nesse documento:
Carta dos Guarani Kaiowa
A Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil é um documento histórico que foi escrito em 2012 pelos líderes da comunidade Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul.
A carta denuncia a violência e a opressão que a comunidade enfrenta por parte dos fazendeiros que ocupam suas terras tradicionais, além de exigir que o governo brasileiro proteja seus direitos e garanta a demarcação de suas terras.
A carta é um apelo desesperado por justiça e respeito aos direitos dos povos indígenas, e se tornou um símbolo da luta dessas comunidades no Brasil.
Pensando na carta dos Guarani é importante observar a importância desse documento enquanto representação de um povo e de uma cultura que resiste dia após dia e luta pelo simples direito de existir.
Nós como historiadores temos que estar sempre atentos para não deixar que as narrativas das classes dominantes subjuguem as outras culturas.
A função de um bom historiador é servir também como uma espécie de amplificador de vozes, principalmente enquanto elas ainda estão vivas, para que elas não se tornem apenas mais um eco do passado, afinal como já vimos em outros artigos.
Fazemos história todos os dias e o tempo todo.
A história é pessoal e coletiva ao mesmo tempo, a história e a memória são campos fundamentais para compreender o passado e o presente, mas também são campos de disputa e interpretação. O historiador precisa estar atento aos interesses sociais e culturais que moldam a narrativa histórica e valorizar as diversas fontes disponíveis para construir uma história mais plural e inclusiva.
Referências para saber mais:
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
ROCHA, Marília.A Carta Guarani Kaiowá e o direito a uma literatura com terra e das gentes.Scielo,2014. Disponível em<https://www.scielo.br/j/elbc/a/KcHR6HF6cnDRSdm7HtZBk5R/?format=pdf&lang=pt> Acesso em 18/03/2023
LE GOFF, Jacques. “Os intelectuais na Idade Média”. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009